A solidão que sufoca e incapacita

Fernanda Mateus
6 min readJul 5, 2020

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homem aprisionado em sua própria mente por viver em cima do muro, 2O2O. https://t.co/AQEvLoKW0b

Antes de tudo eu gostaria de conceituar o que é a solidão. Muitos acreditam que ela é mera ausência, seja de afeto, seja de amor, que tem como significado a companhia de mais alguém. Mas isso é um equívoco! Na verdade a solidão é algo que pode persistir na nossa vida até mesmo quando nos encontramos presentes em vários espaços e rodeado de pessoas, dentro de um relacionamento e até dentro de uma família.

Para Bell Hooks, em “vivendo o amor” a solidão é preenchimento de vazios. Vazio de afetos, bem como de autonomias, liberdades poderes.

A solidão é a base de nosso ser e ela ocupa os nossos espaços vazios e toma conta de nossos monstros internos. Vazios que não soubemos dar conta e tentamos, sem sucesso, colocar outra coisa no lugar durante a vida, mas não foi duradouro.

“A solidão é uma destruição de nós, porque o cimento enrijece e impregna os tijolos que nos montam. E não dá pra mexer na solidão sem nos desfazer. Então tratar a solidão é se desmontar inteira” @prapretoler

Pensar na solidão é essencialmente pensar na existência desse vazio, dores e traumas que formam a nossa personalidade desde crianças até o fim da nossa vida. Para pessoas negras tal solidão é até mesmo ancestral e não é sanada por algo que está ao nosso alcance. Ela não só permanece como uma maneira de sentir dor, mas também como forma de rever nossos caminhos ancestrais tendo a chance de rearranjar esse ponto de dor.

“Solidão é desassossego da alma, é banzo eterno” @prapretoler

A solidão nos sufoca, aprisiona, faz com que não abandonemos traumas passados e mantenhamos nossa criança interior em constante sofrimento. É paralisante, causa o ódio a si mesmo e da rejeição de tudo o que envolve sua existência. Esse é um sentimento que pode atravessar até gerações de famílias e para quebrar esse ciclo encontramos uma dificuldade que nos afoga e, assim, preferimos nos acostumar com o sofrimento da solidão.

Penso nisso porque me sinto assim exatamente agora, como mulher, como parte de uma família com grandes conflitos e que já passou por dores geradas pela pobreza, pela moradia precária, por mortes e, principalmente sentir incapacidade em demonstrar e sentir o afeto. Me sinto só como mulher negra dentro de uma família branca, sabendo que meu pai foi violentamente assassinado e eu ainda não sei até o momento as reais circunstâncias da morte dele, só sei que Luiz Fernando foi mais um homem preto que foi morto e hoje em dia é parte de uma estatística da das mortes por letalidade violenta do Estado. A solidão também me atravessa como mulher negra que já sofreu estupro, abusos sexuais. Me sinto afogada em uma dor latejante por ser lésbica e não ser aceita pela família, por não ter com quem dividir minhas dores e meus vazios.

Cito aqui mais um trecho do livro “Vivendo de Amor” da Bell Hooks sobre solidão:

“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.”

E assim quero dizer que a solidão chegou em minha vida após tentativas fracassadas de preenchimento de um vazio, que só fui perceber que era crônico depois de anos de psicoterapia. Tentei preenchê-lo com estudos desde cedo por ter assumido grandes responsabilidades dentro da minha família desde pequena, a de cuidar do meu irmão e da minha mãe que adoeceu após a morte do meu pai e o abandono da minha família paterna. Tentei preencher depois com música e com terapia desde os 9 anos, falhei e com isso veio a automutilação e o ódio por mim seja me cortando, seja arrancando meus próprios cabelos, rasgando meus escritos e me machucando propositalmente. Depois tentei preencher com a ideia de paixões platônicas por homens que nunca sequer amei. Tentei preencher com sexo, um sexo que só me trouxe dor, exposição, vergonha, vontade de me machucar mais. Com bebidas e relacionamentos curtos eu tento me preencher até o momento, mesmo sabendo do meu fracasso. A militância e a vida acadêmica foram e ainda são grandes meios de preenchimento na minha vida. Todos sem um resquício de sucesso e terminados com mais traumas.

A ideia do amor somente como companhia e um sentimento forte me trouxe a comparação e a sensação de incapacidade e insuficiência, a dor de não ser assumida, de não ser uma “garota normal” como a SZA canta em seu álbum CTRL.

Como mulher lésbica me sinto negada duas vezes, a ideia do amor entre mulheres sempre é branco, bem como a ideia de ser a lésbica que nunca se relacionou com homens, também chamado de gold star, a discussão sobre ser “sapatão emocionada” que assume relacionamentos em pouco tempo, o “rebuceteio”, a projeção de que a lésbica “nunca está só" e “demonstra mais sentimentos e com mais facilidade que uma pessoa hetero”. Me assumi lésbica há poucos anos, só amei uma mulher na minha vida e até com ela eu não consegui sentir outra coisa a não ser a angústia e a frustração de se sentir insuficiente. Não a culpo por isso, muito pelo contrário, minhas dificuldades em demonstrar afeto pela minha vivência me fez criar um muro maior do que o que ela pudesse alcançar, um bloqueio, uma desconfiança maior do que meu amor e minha amizade por ela.

Dentro da minha família me sinto anulada, fraca, infantilizada, negada. Sempre fui a irmã de alguém, a filha de fulana, a prima de beltrana, nunca a Fernanda e quando me tornei a Fernanda de fato passei por grandes processos de rejeição dentro de casa. Ainda assim eu tento me manter em migalhas e momentos de amor que são oferecidos a mim, tenho medo de ficar só. O que eu tenho dificuldade para reconhecer é que eu estou só desde que me entendo por pessoa, e desde o momento que eu me tornei a pessoa que deveria cuidar da mãe, do irmão, da casa, ajudar com as despesas e não poderia sair de casa em hipótese nenhuma, pois estas são minhas responsabilidades.

Até hoje me passa na cabeça a frase que ouvi “se você continuar assim vai comemorar a morte dos seus dois pais no mesmo mês em breve”. Eu sempre fui a forte, a agressiva, a que merecia aquele tipo de afeto, a que não podia chorar, a responsável por toda a saúde e cuidados da minha mãe e irmão e para isso, deveria até mesmo largar os estudos. Hoje em dia eu sei que esses são os reflexos de conviver numa família interracial racista que fez com que eu me odiasse tudo na minha personalidade e no meu corpo com o tempo. E isso tudo continua me deixando vazia e depois só. Não em um momento de gostar de estar só, mas nessa solidão que machuca e até mata.

Eu não consigo perceber que tenho pessoas por mim mais, pessoas em quem confiar, com quem compartilhar isso. Sinto uma grade culpa pelas pessoas que perdi na vida e percebo meus intensos esforços para não querer perder mais ninguém a ponto de não querer nem falar sobre minhas dores para não desagradar e ser aquela pessoa pesada que ninguém gosta de ter por perto. Tenho vontade de morrer e me machucar a cada vez que alguém vai embora na minha vida e penso até então como seria tudo diferente se eu somente aceitasse a imagem que as pessoas tem de mim e me colocasse no lugar de alguém que está para cuidar, agradar e servir.

Me sufoco, paraliso e me deixo morrer pela solidão.

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Fernanda Mateus

Direito | UFRRJ | Seropédica — RJ | “Nossos sentimentos são nossos caminhos mais genuínos para o conhecimento” — Audre Lorde | Tt: @_femros | Insta: @femros