Serviços de Saúde por meio eletrônico e a Uberização da assistência médica

Fernanda Mateus
10 min readJun 28, 2020

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Nos últimos anos e principalmente no período de pandemia da sars-cov-2, também chamado de novo coronavírus, a telemedicina é a especialidade médica que encontrou mais crescimento no mundo. Neste trabalho a telemedicina como a prática clínica de diagnóstico, questionamento e gerenciamento dos serviços de atenção e atendimento de saúde de forma
síncrona ou assíncrona que utilizam alguma forma de tecnologia de informação e comunicação. Indiscutivelmente, não se trata de algo voltado somente para a prática da profissão médica, mas de tudo que envolva à Saúde, seja na relação entre profissionais ou entre pacientes.

A partir dessa premissa, ressalta-se que este modelo tem como potenciais vantagens a promoção do acesso aos serviços de saúde, a criação de oportunidades de aprimoramento para os profissionais e melhorias na atenção e qualidade de vida, além de auxiliar na organização dos provedores (instituições e empresas), isso com as orientações à distância com a finalidade
de que especialistas consultem uns aos outros digitalmente de qualquer lugar e que ocorram mudanças em sua relação com o usuário final do sistema de saúde.

Contudo, tais benefícios são colocados de forma generalizada e sem pensar na classe trabalhadora, principalmente, nos profissionais da saúde e ainda se encontra como falho no que tange aos estudos da sua aplicabilidade conforme as desigualdades sociais advindas do sistema capitalista vigente no mundo.

Assim, para Marx, a base da sociedade, assim como a característica fundamental do homem, está no trabalho. É do e pelo trabalho que o homem se faz homem, constrói a sociedade, é pelo trabalho que o homem transforma a sociedade e faz história, o trabalho torna-se categoria essencial que lhe permite não apenas explicar o mundo e a sociedade, o passado e a constituição do homem, como lhe permitem antever o futuro e propor uma prática transformadora ao homem, propor-lhe como tarefa construir uma nova sociedade. (ANDERY, 2012, p. 399).

Sendo assim, o trabalho é o que faz ser social transformar a natureza com a qual se compartilha sua essência e, por esse mesmo processo, transformar-se de modo aprofundado. A classe trabalhadora, assim, “compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho e que são despossuídos dos meios de produção, conforme a definição marxiana”. (ANTUNES, 2018, p. 101).

O emprego, dentro da sociedade capitalista, é visto como mera produção de riqueza abstrata e de forma a sujeição da grande maioria da população. Dessa maneira ele é o ponto essencial para a sobrevivência do ser social e modifica até toda a sociabilidade do indivíduo estar de acordo com o tipo de trabalho produtivo ou improdutivo que ela exerce.

Outro termo de grande importância a ser conceituado é o fenômeno da Uberização. De acordo com as definições do próprio aplicativo, esta é uma plataforma que conecta usuários aos motoristas cadastrados no sistema, oferecendo preços mais baratos que o serviço de transporte pelos taxistas no geral. O aplicativo foi criado em 2009 por Garrett Camp e Travis Kalanick, nos Estados Unidos, e seu funcionamento teve início a partir de 2010. No Brasil, a Uber chegou em 2014 e, até o presente momento, já transportou mais de 20 milhões de usuários no país, com mais de 500 mil motoristas registrados em território nacional. Atualmente, a Uber está presente em 65 países do mundo e em mais de 600 cidades, sendo mais de 100 delas no Brasil e continua permanece em constante expansão.

Devido ao sucesso do aplicativo, ocorreu o chamado fenômeno da Uberização, como uma forma de precarização das relações de trabalho, devido à quebra da relação empregado- empregador, e de direitos trabalhistas, visto que o trabalhador registrado na empresa Uber, não é considerado como empregado e não há a figura do empregador como detentor dos meios de produção, mas um aplicativo que não garante sequer direitos fundamentais aos seus parceiros cadastrados. Dispõe-se que:

“A instabilidade e a insegurança são traços constitutivos dessas nova modalidades de trabalho. Vide a experiência britânica do zero hour contract [contrato de zero hora], o novo sonho do empresariado global. Trata-se de uma espécie de trabalho sem contrato, no qual não há previsibilidade de horas a cumprir nem direitos assegurados. Quando há demanda, basta uma chamada e os trabalhadores e as trabalhadoras devem estar on-line para atender o trabalho intermitente. As corporações se aproveitam: expande-se a “uberização”, amplia-se a “pejotização”, florescendo uma nova modalidade de trabalho: o escravo digital. Tudo isso para disfarçar o assalariamento.” (ANTUNES, 2018, p. 29)

Essa é uma das novas relações de emprego no século XXI,considerada como
expropriação secundária potencializada. Se antes no modelo Fordista, em uma sociedade industrial, havia uma clara relação entre empregador e empregado, bem como a sua jornada de trabalho, agora em um regime Toyotista, e flexível, tais limites ficam incertos. A Uberização é um exemplo mais do que simbólico: trabalhadores e trabalhadoras com seus veículos, que neste caso são seus instrumentos de trabalho, arcam com suas despesas para sua segurança, tais como gastos de manutenção dos automóveis, de alimentação, limpeza etc., enquanto , o “aplicativo” — que na verdade, é uma empresa privada mundial de assalariamento disfarçado sob a forma de trabalho desregulamentado — apropria-se do mais valor gerado pelo serviço dos motoristas, sem preocupações com deveres trabalhistas historicamente conquistados pela classe trabalhadora. Em pouco tempo, essa empresa se tornou global, com um número espetacularmente grande de motoristas que vivenciam as vicissitudes dessa modalidade de trabalho instável. O principal ponto do sistema Uber é que neste os motoristas não podem recusar as solicitações de serviço. Quando o fazem, sofrem represálias por parte da empresa, que podem resultar no seu “desligamento”.

Submetidos a essas modalidades de trabalho, com contratos “zerados”, “uberizados”, “pejotizados”, “intermitentes”, “flexíveis”, os trabalhadores ainda são obrigados a cumprir o regime de metas, impostas geralmente por práticas de assédio capazes de gerar adoecimentos, depressões e suicídios. Em 2017, os assédios que ocorreram na empresa Uber assumiram uma dimensão tão grande que levaram, inclusive, à demissão de seu CEO, envolvido nessas práticas que se repetem em muitas empresas multinacionais. Cabe ressaltar também que a justiça britânica reconheceu em primeira instância, recentemente, a burla presente nessas modalidades de serviços, obrigando as empresas a estenderem aos trabalhadores e trabalhadoras os direitos trabalhistas vigentes.

No Brasil, visto que o cadastrado para exercer o trabalho por meio da empresa Uber não é considerado como empregado, nos termos do artigo 3o da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, também não possui os direitos trabalhistas previsto, como por exemplo as férias, o décimo terceiro, e etc o que é uma grande perda para a classe trabalhadora. No presente momento, com a pandemia de coronavírus, agravou-se a precarização das relações do trabalho exercido dessa forma, por não garantir ao trabalhador nem a segurança básica para que ele lave as mãos, use máscara e mantenha certa distância mínima de 1 metro para outras pessoas.

Se anteriormente, quem comandava o ritmo da produção seria a demanda de uma certa região, ou o supervisor e o gerente da fábrica, após este fenômeno, com os aplicativos do modelo Uber, o controle é realizado por meio de algoritmos, que definitivamente não são pessoas e não estão localizados no país do motorista. Em consquência, tal trabalho fez desmoronar a separação entre o tempo de vida no trabalho e fora dele, floresce uma nova modalidade laborativa que combina mundo digital com sujeição completa ao ideário e à pragmática das empresas. Diante disso, O resultado mais grave dessa processualidade é o advento de uma nova era de escravidão digital, que se combina com a expansão explosiva dos intermitentes globais.

A Uberização é um fenômeno no mundo do trabalho resultado de um conjunto de fatores convergentes, tais como crises no modelo de Estado de bem-estar, avanço de políticas neoliberais, a desindustrialização da produção, o aumento demográfico da população mundial, a consolidação da sociedade em rede, principalmente em meio ao período de pandemia do COVID-19, a educação voltada para competências e mercado de trabalho, o incentivo ao empreendedorismo, o engajamento e o reforço da empregabilidade. Nesse sentido, não é difícil imaginar que a divisão internacional do trabalho entre Norte e Sul, centro e periferia, tenderá a se aprofundar ainda mais, seguindo um movimento que, sendo desigual e combinado, atingirá de forma diferenciada a totalidade dos países, aprofundando a expulsão de força de trabalho, aumento de desemprego e informalidade em um patamar ainda maior que o atual.

No que concerne à área da Saúde, a Organização Mundial da Saúde, se mostra favorável à telemedicina e ao desenvolvimento do e-health e o mobile-health. Em 2019 já havia apresentado diretrizes acerca do uso da tecnologia via tablets, celulares e computadores com objetivo de melhorar a saúde das pessoas e dos serviços considerados essenciais. Apesar disso, a OMS considera a assistência médica por meio eletrônico como complementar e não há o que se falar em substituição do atendimento do paciente e das relações profissionais. De fato, não há como se garantir o atendimento de forma humanizada, tanto para o paciente, quanto garantindo estrutura de trabalho para o profissional da saúde e ainda se encontra como um desafio em diversas áreas da saúde, como por exemplo, o trabalho que envolve cuidados de saúde mental.

No Brasil, os desafios também se encontram em dois grandes assuntos, a
regulamentação da telemedicina pelos Conselho Federal de Medicina e pelos Conselhos Regionais de Medicina, que atuariam como reguladores de tais serviços não só neste momento, como também como meio de trabalho pós-pandemia, mas passa por veto pelo presidente da República Jair Messias Bolsonaro, o que afasta a ideia de qualificação do empregado para exercer tal profissão e o coloca nas mesmas relações de trabalho que todas as profissões, e o Sistema Único de Saúde, que apesar de sua resistência permanecendo como essencial para a garantia do Direito à Saúde nos termos dos artigos 196 a 200 da Constituição Federal Brasileira de 1988, e serve de apoio até mesmo para o setor privado de saúde do país, sofre constante desmonte e sucateamento pelo governo federal.

A Uberização entra nessa área como proposta de outros países e pelos Conselhos Regionais de Medicina seguindo a lógica do sistema capitalista de relações de trabalho precárias, de criar uma plataforma, tal como alguns exemplos, o Uber, Ifood ou Cabify, e etc., como objetivo que o paciente solicite o serviço médico e ele seja atendido de acordo com sua demanda, suas especificações e preferências para que este utilize seu plano de saúde por meio de uma seguradora para realizar a consulta. Dessa maneira, a plataforma passaria a tomar o lugar central na relação entre o médico e o paciente e, com isso, passaria a ter que se adaptar ao aplicativo, pois o paciente, dessa forma, também tende a realizar escolhas de acordo com sua confiança no aplicativo e não mais nas qualificações do médico ou pelo local onde ele exerce seu trabalho. Mais uma vez, observa-se uma forma de, com o discurso de baratear os custos do atendimento e serviço médico por meio eletrônico, não garantir direitos trabalhistas e o transformar no precariado, sem mencionar nos demais trabalhadores que não são considerados neste debate e ainda não há previsões concretas de como se daria o trabalho para esses trabalhadores, considerando suas colocações em segundo plano neste modo de trabalho.

Ademais, visto que a estruturação pelo tripé plataforma, hospital e profissional da saúde, tem ocorrido pelo setor privado de saúde de outros países, como por exemplo, os Estados Unidos, ressalta-se em como o Sistema Único de Saúde passa, com isso, por mais um processo de desmonte por meio de tal atendimento, isso considerando o teto de gastos com a Saúde colocado pelo governo federal, mesmo sendo um direito fundamental. Também há de se falar acerca do falso discurso de que tal meio garante um atendimento mais acessível à população, pois dados do IBGE deste ano, mostram que uma a cada quatro pessoas não tem acesso à internet e, portanto, não teriam como conseguir o serviço de saúde “acessível” e “ao mesmo tempo, sem transgredir a ética e adequação” na forma de trabalho e assalariamento destes profissionais.

Embora a telemedicina e a uberização dos serviços médicos seja uma realidade provavelmente próxima, traz mais possibilidades desumanização da relação entre médico e paciente e precarização do trabalho, que não é algo estático, mas um modo de ser intrínseco ao capitalismo, um processo que pode tanto se ampliar como se reduzir, dependendo diretamente da capacidade de resistência, organização e confrontação da classe trabalhadora.

Logo, é algo que traz mais perdas do que ganhos, em uma modalidade de trabalho sem vínculos empregatícios, com uma sociabilidade limitada e aprisionando mais o trabalhador a uma condição de alienação e passando o seu mais-valor para uma plataforma que não detém os meios de produção. Os avanços científicos e tecnológicos, portanto, devem servir como forma de garantir direitos universais. tais como a vida e a saúde para o paciente, de maneira que não aumente mais as desigualdades sociais, e tendo em vista a finalidade de emancipação do trabalhador para a realização de um trabalho mais humanizado.

  1. ANTUNES, Ricardo. o novo proletariado de serviços na era digital, 2018, p. 53;
  2. ANTUNES, Ricardo. o novo proletariado de serviços na era digital, 2018, p. 53;

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-
internet#:~:text=A%20Pesquisa%20Nacional%20por%20Amostra,n%C3%A3o%20tem%20acesso%20%C3%A0%20internet >. Acesso em: 25 de junho de 2020;

ANDERY, Maria Amélia Pie Abid. et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. 436 p.

ANTUNES, Ricardo. Coronavírus: O trabalho sob fogo cruzado, Ed. Boitempo, 2020, São Paulo;

ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, Ed. Boitempo, 2018, São Paulo;

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho (Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho), Ed. Boitempo, 2010, São Paulo;

COSTA, José Augusto Fontoura. Servicios de salud por medio electrónico: una reflexión sobre el derecho del servicio médico uberizado. 2020;

JACOBIN BRASIL. O trabalho precarizado não é uma novidade — faz parte do capitalismo. Disponível em: < https://jacobin.com.br/2020/04/o-trabalho-precarizado-nao-e-uma-novidade-faz-parte-do-capitalismo/ >. Acesso em: 21 de junho de 2020

MARX, K. O Capital, volume I, Ed. Boitempo, 2011, São Paulo;

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MALDONADO, J. et al. Telemedicina: desafios à sua difusão no Brasil. Disponível em <https://www.scielo.br/pdf/csp/v32s2/pt_1678-4464-csp-32-s2-e00155615.pdf >. Acesso em: 26 de junho de 2020;

UBER BLOG. Descubra o que é o Uber e saiba como ele funciona. Disponível em: < https://www.uber.com/pt-BR/blog/o-que-e-uber/ >. Acesso em: 20 de junho de 2020.

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Fernanda Mateus

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